
Análise não é ciência exata nem profecia. Nem sempre o resultado será aquele que desejamos. Por Ricardo Schweitzer*
Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita
Indesculpavelmente sujo
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, absurdo
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante
Que tenho sofrido enxovalhos e calado
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Pra fora da possibilidade do soco
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Dias atrás eu publiquei um relatório especial para os assinantes da minha carteira de dividendos, cujo objeto eram algumas small caps pelas quais eu era responsável na minha encarnação anterior como analista.
Dentre as empresas abordadas nesse relatório estava a Via – a antiga Via Varejo, que parece ter aderido àquela coisa paulistana de Juliana virar Ju, Letícia virar Lê e Bruna virar Bru. Essa era uma tese que me era muito cara, em especial porque foram duas temporadas.
Vocês hão de me perdoar pela falta de memória e pela indisponibilidade de arquivos, pois não mais trabalho na empresa na qual me via quando fiz a recomendação original. Mas, na época, a Empresa ainda se via sob o jugo do Pão de Açúcar, que nem sabia direito o que fazer com ela, e a ação devia valer uns 4 reais. Por mais que a operação tivesse inúmeros defeitos – e tinha mesmo –, parecia barato demais para ignorar; a famosa assimetria.
Recomendei e fui alvo de ceticismo. Mas eis que, eventualmente, as coisas começaram a andar a favor, principalmente em função da saída do GPA e do retorno dos Klein ao comando, com uma sinalização clara do rumo que seria dado para recuperar a empresa.
Eventualmente, bateu uns 12 reais, mais ou menos. Vi-me satisfeito e recomendei a venda. Paradoxalmente, a ação, então, se via na boca do povo de uma certa plataforma de investimentos não muito afeita a divergências. Um dos fundadores fez questão de mencionar minha recomendação de venda no Twitter em tom de deboche. A torcida organizada foi à loucura…
O tempo passou, o mundo girou. A ação, se bem me lembro, ultrapassou os 20. Era a tal da Nova Magalu que tanto procuravam? E não faltasse quem se visse p… da cara comigo porque eu, supostamente, tinha mandado (analista manda em cliente, sabiam?) vender “cedo demais”.
Veio o aumento de capital. A pandemia se agravou. A maré desceu. O tempo virou.
Sei que, lá pelas tantas, a empresa havia avançado operacionalmente (principalmente no seu ecommerce, que era pra lá de capenga na época da minha primeira investida…) e o preço havia retornado a patamares civilizados.
Um belo dia, provocado, decidi revisitar a tese. E concluí: é, dá. Não é a barganha que era nos 4 reais, mas dá.
Eu demorei certo tempo para perceber que, dali em diante, a empresa era muito diferente daquela de antes – e não diferente de um jeito bom. Se, antes, imperava o pragmatismo acerca de quais eram os desafios e quais eram os planos de ação para a eles fazer frente, agora predominava um discurso de disrupção, transformação digital, KPIs com pouca ou nenhuma correlação com a linha final do balanço… ficou com jeito de startup que não precisa ganhar dinheiro.
Faça-se justiça: o varejo mudou muito, tanto por conta da sua própria evolução quanto em razão dos impactos da pandemia e do avanço de concorrentes. Mas mesmo assim, aquilo me incomodava – não sei ao certo se não estava certo ou se aquele negócio havia se transmutado em algo que excedia minha capacidade de análise. Mas comecei, aos poucos, a perceber que estava perdendo a mão.
E aqui, meus amigos, eu errei – e venho publicamente reconhecer isso. Quando a coisa ficou nebulosa, eu devia ter desembarcado. Mas não o fiz; minimizei para mim mesmo as incongruências e joguei a culpa no cenário macro desafiador.
A questão, então, era se os tais desafios perdurariam por mais tempo do que o caixa aguentaria. Resposta essa à qual me lancei absolutamente sozinho, pois o discurso da gestão continuava estritamente pirotécnico.
E, então, outros fatores se impuseram: saí da empresa onde então me via; me deparei com o desafio de reestruturar minha vida profissional mais uma vez; tive perdas familiares; descobri que seria pai… enfim. Se antes eu estava diariamente no front, acompanhando as empresas recomendadas, no segundo semestre do ano passado isso foi fortemente prejudicado.
Muitas pessoas com quem compartilhei essas reflexões alegaram que, a partir do momento em que desencarnei do papel que desempenhava em minha última empresa, isso não era mais minha responsabilidade – afinal, fui devidamente substituído na prestação de serviços aos clientes – e eu deveria simplesmente ficar em paz. Do ponto de vista contratual, é isso mesmo.
Mas eu infelizmente não sou assim.
Sempre tive para mim que, antes de tudo, a confiança no analista é pessoal. Foi o meu nome que foi apresentado aos potenciais assinantes como fator de convencimento para que eles assinassem aquele produto. Então, para mim, essa responsabilidade segue comigo. Não é a forma mais fácil de se viver, mas é a única que conheço.
E foi por isso que, tão logo me vi minimamente estruturado, tratei de dedicar algum tempo – sem prejuízo à carteira de dividendos, que é minha prioridade no momento – para revisitar aquelas teses. E, ao rever VIIA3 com o devido distanciamento que só o tempo e as novas circunstâncias permitiriam, ficou claro para mim que ali eu errei.
E, sem qualquer compromisso com a manutenção do erro, comuniquei minha recomendação de venda aos assinantes – e, agora, a compartilho com todos vocês:
VIIA: Hora de dar tchau
Recomendo vender VIIA3. O ano de 2021 foi prolífico em demonstrar que os desafios atuais e futuros do setor varejista são enormes e, no caso específico, novos aumentos de capital podem ser questão de tempo. Tudo considerado – inclusive oportunidades com melhor relação risco-retorno nos preços atuais, é hora de seguir em frente.
Um ano de pressão. O ano de 2021 foi bastante duro para o setor de varejo como um todo, mas ouso dizer que, no caso particular de VIIA, os desafios foram ainda maiores. Isso porque a Companhia se viu obrigada a acelerar seu processo de transformação digital – fundamental para sua sobrevivência a longo prazo – em meio e enormes desafios de curto prazo: má performance das lojas físicas (ainda reflexo da pandemia), redução da renda disponível (reflexo da conjuntura econômica), acirramento da concorrência (tanto com players locais há muito estabelecidos quanto, também, entrantes – principalmente asiáticos), queima significativa de caixa, etc.
Sem descanso à frente. Ainda que 2022 traga avanços em algumas áreas – por exemplo, a aparente superação da pandemia de COVID19 –, a menor renda disponível e o acirramento da concorrência tendem a impor à Empresa uma recuperação mais lenta. Além disso, a sinalização de aumento da take rate sobre vendedores terceiros do marketplace – cujo crescimento de base foi o grande responsável pela expansão do GMV 3P – tende a se traduzir em vento contrário à continuidade da expansão da operação online. Nesse contexto, concorrentes melhor capitalizados se veem em boas condições para, assim querendo, acirrar ainda mais a competição.
Custo financeiro merece atenção. Em função tanto de financiamentos quanto, especialmente, das recorrentes antecipações de recebíveis, a despesa financeira da Companhia cresceu significativamente no ano passado – mesmo com uma taxa Selic média de 5,6% naquele ano. Assumindo i) Receita de R$35 bilhões para 2022 (consenso de mercado); ii) Selic média de 10,5% no ano corrente e iii) crescimento do resultado financeira proporcional à variação da taxa, teríamos despesas financeiras representando c. 5,3% da receita – que é mais do que a margem operacional da Companhia.
Fonte: Companhia e Analista.
Queima de caixa não parece ter fim. Ao longo de 2021 a Via consumiu R$1,2 bilhões de caixa – oriundos, basicamente, de recursos do último aumento de capital e da antecipação de recebíveis. Assumindo desempenho similar em 2022, a Companhia pode se ver na posição de i) aumentar o promocionamento dos produtos, gerando uma melhora nas vendas às custas de piora na margem operacional; ii) aumentar (ainda mais) a alavancagem financeira da companhia, o que traria bastante desconforto – dado que o nível de endividamento atual já é elevado; ou iii) realizar um novo aumento de capital para continuar financiando a estratégia atual, com potencial de diluição significativa dos atuais acionistas.
Fonte: Companhia e Analista.
1T22 confirma a narrativa. Via reportou um resultado fraco, com vendas de R$7,4 bilhões, -2,0% a/a (-4% vs. consenso) e EBITDA de R$758 milhões, com uma expansão de +2,5p.p. de margem YoY. O destaque negativo foi a performance operacional aquém do esperado, com a operação de lojas físicas registrando vendas de R$5 bilhões, -4% a/a, ainda afetado pelos efeitos da pandemia. Além disso, Via registrou um GMV extraordinariamente fraco de R$10,7 bilhões no 1T22, queda de -3% a/a. O que impressionou foi que o crescimento absoluto das vendas online foi de apenas R$0,2 bilhões a/a (a título de comparação, tem-se o crescimento de R$3,3 bilhões de MercadoLibre), gerando-nos um grande desconforto sobre toda estratégia de manter subsídio em taxas para os clientes para acelerar crescimento. Por fim, na comparação anual, Via queimou R$528 milhões em patrimônio líquido e registrou um aumento de dívida de R$1,3 bilhão, o que aumenta a preocupação em relação à necessidade de emissões adicionais de dívida – ou novos aportes de capital.
Uma crítica pública… Tem me desagradado bastante a postura do management em relação a todas essas questões nos últimos trimestres. Ao que parece, os executivos estão, em certa medida, mais preocupados em desviar a atenção dos problemas apontados, dedicando a maior parte dos relatórios, apresentações públicas e conference calls a tecer loas a temas como ESG, inovação, etc. Com o devido respeito, a Companhia precisa sobreviver. E, para isso, precisa de caixa: ou mediante geração própria, ou mediante novos aportes – que, em um mundo de custo de capital crescente, é menos propenso a financiar discursos ladeados por mau desempenho econômico-financeiro do que num passado recente de quasi free money. Este analista, muito respeitosamente, pensa que esta postura debilita a percepção do mercado em relação à Empresa.
…e uma autocrítica. Analisando retrospectivamente, acho que fui bastante feliz na recomendação original da então Via Varejo – à época, ainda controlada pelo GPA – e na posterior recomendação de venda (que, à época, foi alvo de críticas por, supostamente, ter se dado cedo demais). Na segunda rodada, porém, acho que fui leniente demais com a Companhia. De qualquer forma, não se pode ter compromisso com o erro.
Recomendação: VENDER VIIA3.
(Publicado originalmente em 14/05/2022 em relatório privado destinado aos assinantes da minha carteira de dividendos)
Dias atrás, no Instagram, me perguntaram se eu me incomodava pela minha recomendação de Banrisul não ter vingado – e foi essa pergunta que fomentou toda a reflexão que trago neste artigo.
Sobre Banrisul, francamente a resposta é não.
Análise é mais arte do que ciência. Não é ciência exata, tampouco profecia. A busca do analista é por determinados padrões quantitativos e qualitativos nos fundamentos das empresas que costumam estar associados a desempenhos acima da média no futuro – a dimensão do prazo varia conforme o tipo de tese e as técnicas empregadas.
Friso que costumam estar associados porque não há qualquer garantia de que aquilo se concretize sempre. A realidade é muito mais complexa do que qualquer analista é capaz de contemplar em seus esforços de análise. Além disso, a realidade está em constante mudança, em constante movimento – e, à luz dessas mudanças, não necessariamente as convicções originais seguem fazendo sentido.
No caso de Banrisul – que segue na minha carteira pessoal e que sigo recomendando como alternativa para dividendos, mandato no qual o considero perfeitamente cabível –, olho para trás e fico completamente em paz com o esforço de análise que empreendi. Não teria feito absolutamente nada diferente.
O mesmo, como já expus, não posso dizer de Via. Ali eu penso que, sim, errei. E, a partir disso, o que me resta é aprender com o erro para não mais nele incorrer.
E é muito bom poder dizer isso.
Muito em função dos esforços de venda dos inúmeros participantes deste mercado no qual me vejo inserido, constrói-se a imagem do analista como guru infalível. O observador atento há de lembrar que todos que posam como donos da verdade têm boa quota de tropeços em seus respectivos caminhos. Mas disso não se fala, porque não vende.
Uma das grandes bênçãos do caminho absolutamente independente que decidi, desde o ano passado, trilhar é que estou completamente livre disso. Para sempre.
E é exatamente essa liberdade que me permite vir aqui e dizer com todas as letras: errei, erro e, eventualmente, vou errar de novo – oxalá diferentes erros, mas quiçá tão hediondos quanto. Se você busca infalibilidade, por favor, vá em paz para bem longe de mim.
Do lado de cá, pouco mais tenho a oferecer do que a mais absoluta franqueza e o mais desmedido comprometimento. Mas perfeição e infalibilidade, jamais: pelo contrário.
Sou imperfeito e livre. Tão imperfeito quanto livre.
Um abraço.
*Ricardo Schweitzer é analista CNPI, consultor CVM e investidor profissional.
Twitter: @_rschweitzer, Instagram: @ricardoschweitzer