
A quem interessa que investidores adquiram uma coisa pensando que é outra? Por Ricardo Schweitzer*
Dias atrás saiu a notícia de que o Procon do DF havia voltado sua mira para aquela famigerada rede de fast food dos arcos dourados. A entidade havia determinado a suspensão da venda do lanche McPicanha, bem como de toda e qualquer veiculação de conteúdo publicitário relacionado ao lanche.
O motivo? O tal McPicanha não tem picanha em sua composição. Vejam vocês a que futilidade, que bobagenzinha o Procon se agarrou, não é mesmo? Imagina se haveria algo de errado em anunciar “A” e não entregar nada que tenha a ver com “A”! Onde eles pensão que estão? Na Suíça?
(A declaração acima pode conter ironia…)
Fiquei com aquilo na cabeça. E concluí que abundam exemplos de produtos que pouco (ou nada) têm a ver com o que parecem ser – se levarmos em conta os anúncios do Instagram, então, a lista é longa; se incluirmos as fotos pesadamente editadas dos aplicativos de paquera, então, rumamos ao infinito…
No mundo dos investimentos, os McPicanhas são muitos. Mas um, em particular, me incomoda bastante: são os chamados “FIIs de Recebíveis”.
Se perguntarmos a uma criança o que é um investimento imobiliário e essa criança for significativamente mais velha que o Otto – que, a essa altura, sequer gugu dadá responderia –, é altamente provável que a resposta sugeriria que isso tem a ver com investir em imóveis. Da mesma forma, se você falar em investimento imobiliário com o seu tio do é pavê ou pacumê, ele vai deduzir que você está falando de comprar um lote ao lado do dele para construir casa geminada – e vai emendar parabenizando você por finalmente ter reconhecido que quem compra terra não erra.
A grande questão é que um FII de Recebíveis (ou FII de Papel, como também é chamado) não tem um centavo sequer em imóveis. Eles investem em instrumentos de crédito que têm como lastro operações envolvendo imóveis.
Por exemplo: A vende um imóvel a prazo para B, que deverá pagar pelo mesmo a prazo, em uma operação que tem como garantia o próprio imóvel vendido. A pode antecipar o recebimento dos recursos repassando os direitos que detém contra B a uma companhia securitizadora – que, mediante um custo, empacota esses direitos com outros na forma de certificados de recebíveis imobiliários (os famosos CRIs).
Ao fazer isso, A se retira do negócio: qualquer questão relativa à eventual inadimplência de B deve ser resolvida diretamente com B.
A explicação acima é bastante tosca, mas evidencia de maneira bastante simples que os Fundos de Recebíveis não investem em imóveis, mas sim em operações de crédito. E, portanto, são muito mais semelhantes a fundos de crédito privado do que a fundos de investimento imobiliário.
Por que são ofertados como FIIs? Porque a lei permite (o que, penso eu, é uma aberração) e porque a tributação é muito mais interessante do que a atinente aos fundos de crédito privado. Fez-se um mercado inteiro a partir de uma brecha na lei.
Se o regulador dormisse no ponto, também não haveria nada de errado em chamar de McPicanha um sanduíche sem picanha.
Existem, por outro lado, hamburguerias que oferecem lanches com picanha. Era o caso do tradicional The Fifties, aqui em São Paulo – que, aparentemente, fechou as portas recentemente. Imagine você a confusão que provocaria nos consumidores ao perceber que o preço do McPicanha era substancialmente diferente (menor!) do PicBurger? A conclusão óbvia seria de que o lanche do Palhaço Ronald era muito mais vantajoso.
Pois é o mesmo dilema perante o qual se encontram investidores quando comparam yields de FIIs de tijolo – isto é, que investem em imóveis físicos – e de papel – que aplicam em direitos creditórios relacionados ao mercado imobiliário.
Simplesmente não é a mesma coisa, da mesma forma que o lanche de picanha não é a mesma coisa que o lanche de sei-lá-que-carne-com-aroma-de-picanha da rede do palhaço. Ambas as situações são uma palhaçada, mas na primeira o circo é a B3 mesmo…
Mas os problemas não são meramente terminológicos. Há questões sobre os Fundos de Recebíveis que não são claras ao investidor afegão médio. E uma delas é o potencial efeito da marcação a mercado dos títulos detidos pelos fundos sobre a capacidade de distribuição de dividendos por eles – e, por conseguinte, o valor justo da cota.
Marcação a mercado é o ajuste do valor contábil de um ativo pelo preço de mercado mais recente dele. Se você entrar no seu homebroker no final do dia, todas as suas ações estarão marcadas a mercado pela cotação do último fechamento de pregão. E, comparando-as com os respectivos custos de aquisição (com aqueles famosos preços médios que tão obsessivamente vocês acompanham…) será possível verificar se, naquele momento, você está apurando lucro ou prejuízo.
Quando a gente investe em títulos que não são tão líquidos, entretanto, a tal marcação a mercado fica mais complicada. Se não tem preço, ou usa-se o mais recente disponível (que pode ser de dias, semanas, meses atrás…) ou efetua-se a marcação na curva de juros, que resumidamente consiste num cálculo teórico que apura o valor justo do título a depender do comportamento de outros instrumentos mais líquidos (os futuros de DI).
A grande questão é que a capacidade de distribuição de dividendos dos fundos de recebíveis é determinada pelo resultado contábil do fundo – que, por sua vez, depende da marcação dos títulos que o fundo carrega. Não necessariamente tal resultado coincide com recursos efetivamente recebidos, em cash, a cada mês (e é por isso que, tipicamente, os fundos têm certo nível de caixa que oscila ao longo do ano).
E o problema é que, muitas vezes, falta transparência a respeito da forma como os títulos estão sendo contabilizados; se a marcação a mercado está sendo feita como deveria ser ou não. E, no caso dos títulos que não estão marcados a mercado, como tiveram seus valores apurados. Tudo considerado, há de se reconhecer que algum espaço existe para criatividade dos gestores – que podem se sentir incentivados a dar uma força nos critérios de contabilização para sustentar resultados (e manter investidores calmos) em momentos de turbulência para não afugentar cotistas.
Sou da opinião de que cada um faz com seu dinheiro o que quer. Mas que é importante que as pessoas de fato entendam no que estão se metendo. E, em se tratando de FIIs de Recebíveis, desconfio fortemente de que muitos entraram de gaiatos na história – o que praticamente assegura que, no primeiro barata voa que algum fundo propiciar, a coisa pode terminar mal.
E para você? Qual(is) é(são) o(s) maior(es) McPicanha(s) do mercado? Me conta lá no Twitter ou no Instagram.
Um abraço e até a próxima!
*Ricardo Schweitzer é analista CNPI, consultor CVM e investidor profissional.
Twitter: @_rschweitzer, Instagram: @ricardoschweitzer