Um mercado sem malandragem é responsabilidade de todos | Por Ricardo Schweitzer

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Artigo de Ricardo Schweitzer

O uso de informações privilegiadas não pode ser admitido – e, tampouco, a leniência dos entes reguladores perante isto. Por Ricardo Schweitzer*

“Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica”

Este era o texto de uma propaganda de cigarros no longínquo ano de 1976. Estrelava o comercial o futebolista Gérson Nunes, eleito segundo melhor jogador da Copa do Mundo de 1970 e considerado um dos maiores jogadores da história do futebol.

Nascia, ali, a famosa Lei de Gérson. Ou melhor, não nascia: apenas era reconhecida pelo direito consuetudinário (dos costumes), pois sua origem certamente remonta a muito antes. A figura do malandro data do começo do século XX e jaz, imortal, em sambas clássicos.

É com pesar que reconheço que a malandragem, o tirar vantagem em tudo é profundamente arraigado na cultura do meu País. E isso, obviamente, alcança nosso mercado de capitais.

Acionistas da Natura foram pegos no contrapé, no último dia 20, quando subitamente suas ações sofreram forte desvalorização, de cerca de 15% no dia, sem que nenhum fato público fosse noticiado. 

O movimento, por óbvio, justificava o arquear de sobrancelhas. Não é comum que uma ação líquida, amplamente monitorada pelo mercado, sofra uma desvalorização dessa magnitude em um único dia sem nenhum fato concreto que a justifique – exceto, talvez, em momentos de estresse generalizado no mercado, mas aí é todo mundo… 

Não tardou para que viesse à tona, por meio de competentíssima reportagem da jornalista Ana Paula Ragazzi para o noticioso Brazil Journal, uma possível explicação para o feito: segundo apurado pela repórter junto a gestores de recursos, analistas teriam se reunido com a empresa naquele dia e tomado conhecimento de que os resultados do 1T22 seriam uma dor de cabeça só. De posse da informação, teriam corrido para repassá-la a seus clientes – que, por sua vez, teriam se apressado a vender as ações para proteger seus respectivos portfólios do fiasco à vista.

Até onde me é possível conhecer e interpretar as normas vigentes, tem-se que, se verificados os fatos narrados na reportagem, o episódio narrado configura uso de informação privilegiada.

Sendo dolorosamente franco, tenho que reconhecer que isso não é fato inédito. Para ilustrar isso, posso usar desde anedotas de mercado – como, por exemplo, de certo banco cuja tesouraria não errava um prognóstico sequer de decisão do Copom durante certo governo… – até experiências pessoais: em minha vida de analista, já me deparei com situações onde, em meio a contatos absolutamente republicanos com empresas, acabou me sendo dito mais do que deveria.

Mas é justamente por conta da possibilidade de ocorrência desse tipo de coisa – que pode decorrer tanto de mera falibilidade humana, ou de má-fé dos envolvidos, ou ainda de infinitas combinações desses dois extremos – que existem as normas.

Empresas estão sujeitas (seja na prática, seja em teoria, a depender do caso) a uma infinidade de regras com relação à divulgação de informações. Aos analistas, por sua vez, se impõem regras com relação ao uso das informações que obtêm.

Empresas não podem divulgar informações com potencial de impacto material a grupos determinados de investidores: ou procedem a divulgação ampla, ou não divulgam para ninguém.

Aos analistas, por sua vez, é vedada a busca de informações privilegiadas. E, caso ocorra contato acidental com informações dessa natureza, é vedado o seu uso e obrigatória a notificação, à empresa, da necessidade de fazê-las públicas.

No que diz respeito aos analistas, entretanto, é desnecessário dizer que os incentivos para agir de forma diversa são grandes. Afinal de contas, quem está de posse de informação que pode fazer seus clientes ganharem ou perderem dinheiro tem todos os incentivos do mundo para passá-la adiante e ser percebido como útil, bem informado, etc. Aparentemente foi o que aconteceu no caso narrado – no qual, segundo apurado pela repórter, analistas saíram da reunião com Natura e foram correndo, serelepes, contar aos clientes o que ouviram, numa disputa de quem chega primeiro com a notícia quente.

Se assim de fato foi, quem não teve acesso às mesmas informações – a maioria do mercado – ficou de bobo da história. E não, isso não pode ser admitido.

A essa altura deste artigo, suspeito que você, leitor, esteja inclinado a se encaixar em um dos três seguintes grupos: de um lado, a turma do alguém tem que fazer alguma coisa; do outro, a do isso não vai dar em nada. Lá no fundo, escondidos, estão os indignados e dispostos a fazer algo a respeito.

(Adivinhe a qual grupo eu pertenço!)

Tão arraigada na nossa cultura quanto a malandragem é a nossa passividade diante do que é errado. Falta, à maioria, disposição para, diante de um malfeito, tomar alguma atitude. 

Nunca vou me esquecer, por exemplo, de minha primeira (e, até hoje, única…) viagem à Alemanha. Lá eu vi uma pessoa comum apontando e xingando um casal que estava cruzando uma faixa de pedestres com sinal aberto. Ele estava certo; eles estavam errados; ele estava certo em falar.

Por aqui, quem aponta um erro recebe, frequentemente, um infame questionamento em resposta: e você é o fiscal, por acaso? Como se o cumprimento do que é correto só fosse devido perante a polícia e todos tivéssemos a obrigação de sermos cúmplices do que é errado… 

Não, não precisa ser assim. Vou além: não pode ser assim em nenhuma sociedade que se proponha a avançar.

Com relação à empresa, a responsabilidade de apuração é da CVM. Com relação aos Analistas, o dever fiscalizatório é da Apimec. 

Já a responsabilidade de cobrar da CVM e da Apimec que seus respectivos trabalhos sejam feitos é de TODOS NÓS.

A expressão sousveillance foi criada pelo pesquisador canadense Steve Mann, derivada do francês surveillance (“vigilância”, que foi integrada também ao inglês). Enquanto o prefixo sur significa “acima”, sous quer dizer “abaixo”.

Ou seja, sousveillance é a fiscalização que vem de baixo; dos fiscalizados em relação ao fiscal.

Na origem, o conceito tem a ver com coibir abusos de poder – exemplo clássico é filmar ação policial. Mas ouso, eu, esticá-lo no sentido de abarcar, também, a falta de exercício do poder – isto é, a inércia daqueles a quem determinados poderes foram confiados, para zelar pelo interesse coletivo, quando situações em que agir é obrigação se configuram.

Os lugares mais quentes do inferno estão reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise” – palavras de John F. Kennedy, inspiradas em um trecho d’A Divina Comédia.

E esta, infelizmente, é uma situação frequente no mercado de capitais brasileiro: enquanto absurdos acontecem, os fiscais dormem… 

Pois bem. Vamos acordar os fiscais? Vamos demandar que eles façam o que lhes cabe fazer?

Denúncias à CVM devem ser encaminhadas por meio deste link. Já denúncias à Apimec devem ser enviadas para o e-mail supervisao@apimec.com.br.

Eu vou fazer minha parte. E você? Vai só reclamar na internet ou arregaçar as mangas também?


Ricardo Schweitzer é analista CNPI, consultor CVM e investidor profissional. 

Twitter: @_rschweitzer, Instagram: @ricardoschweitzer

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