Research independente até onde? | Por Ricardo Schweitzer

Artigo de Ricardo Schweitzer

Recentes transações suscitaram preocupações legítimas sobre o futuro desse modelo de negócio. A questão é: até que ponto elas mudam algo?. Por Ricardo Schweitzer*

Saudações.

Voltemos ao início de 2001. Eric Dinallo, chefe do birô de proteção a investidores da Procuradoria do Estado de Nova York, encaminhava a seu chefe, Eliot Spitzer, um memorando elencando as prioridades de seu departamento para o ano que se iniciava. 

Cabia àquela Procuradoria poderes de investigação de diversos tipos de crime financeiro, independentemente da jurisdição. Na prática, Dinallo era o “xerife” do mercado de capitais americano.

(Se você assistiu Billions, a resposta é sim: Chuck Rhoades certamente foi inspirado em Eric Dinallo. Só não sei se esse último também curtia levar uns tapas da esposa ou isso foi liberdade poética dos roteiristas…)

O primeiro item da lista era investigação de abusos por parte de consultores de investimento. O segundo, investigação de analistas de firmas de investimento.

A não ser que você tenha desembarcado de Marte ontem mesmo, é bem provável que você já tenha sido bombardeado por todos os lados a respeito dos potenciais conflitos de interesse dos bancos e seus gerentes e das corretoras e seus assessores. Trocando em miúdos, o gerente (ou assessor) tem mais conhecimento do que o cliente médio e, no processo de aconselhamento, pode acabar indicando produtos que são melhores para ele (comissões gordas) do que para o cliente.

Aí fica aquela briga eterna: os bancos acusando os corretores de serem um bando de aventureiros que querem drenar os bolsos dos poupadores; as corretoras bradando contra a concentração bancária* e os gerentes preguiçosos que vendem título de capitalização e PGBL para velhinhas.

* Nota de rodapé: o discurso das corretoras contra a concentração bancária só dura até elas se tornarem bancos também.

Por outro lado, pouco se fala dos conflitos de interesse dos analistas de investimento. E isso tem lá suas razões de ser: por muitas e muitas décadas, essa era a turma dos nerds do mercado, que ficavam trabalhando apartadas do restante da estrutura (tanto por exigências de compliance quanto também, sinceramente, por uma predominante falta de afinidade com as turmas de sales e trading – simplesmente é gente de personalidades muito diferentes). Nunca envolveu muito glamour. A vitrine sempre coube aos traders, à galera de sales e aos pavões do investment banking.

Mas aquilo havia mudado recentemente: os anos noventa haviam sido de crescimento exponencial para o mercado de ações americano, com enorme influxo de recursos para bolsa. Nesse contexto, os analistas ganharam força em relação ao restante do pessoal na formação de opinião. E a independência das equipes de análise era um poderoso argumento de venda.


(Soa familiar?)

Só que, em meio àquilo tudo, um monte de gente que havia atendido ao chamado estava perdendo dinheiro. O contexto? Um monte de tech stocks haviam aberto capital anos antes e havia um verdadeiro frenesi em torno delas. Esse frenesi foi abruptamente interrompido pelo evento que ficou conhecido como a bolha das pontocom.

***

Era uma vez um analista chamado Henry Blodget. O sujeito havia, anos antes, feito fama após ser o único a antever o futuro promissor de uma então pouco conhecida empresa chamada Amazon. Como AMZN porrou, a carreira de Blodget porrou junto: entrou para o time da toda-poderosa Merrill Lynch.

Os caminhos de Dinallo e Blodget se cruzariam pela primeira vez por conta de uma queixa de um sujeito que alegava ter perdido mais de meio milhão de dólares por conta de uma recomendação de Blodget. Ele havia comprado ações de uma tal InfoSpace ao preço de US$122,00 e as segurou até atingirem US$10,00 (sim, dez dólares). Ao longo da tortuosa queda, o sujeito contactou seu assessor de investimento diversas vezes para vendê-las, e foi sempre dissuadido com base na visão otimista de Blodget sobre a companhia.

Investigações posteriores das comunicações internas da Merril Lynch revelaram que os questionamentos eram frequentes: dezenas de milhares de clientes estavam insatisfeitos e preocupados com o resultado de suas aplicações, motivadas pela visão do analista.

Aqui faço um adendo bastante pessoal: todo analista está sujeito a críticas por conta do mau desempenho de suas recomendações – e sei disso muito bem, por experiência própria: em outros tempos já fui muito enxovalhado por recomendar comprar Forjas Taurus e vender Vale; mais recentemente, d1000, Banrisul e Cogna fazem parte do meu calvário.

Mas Blodget acreditava no que estava escrevendo, não é mesmo?

Aparentemente, não muito.

Um e-mail dele para sua assistente, Virginia Syer, dava outra impressão: encaminhando outra queixa de cliente, ele prescreve: “Estou de saco cheio de receber e-mails assim. Por favor, atualize esse preço-alvo e retire essa porcaria de qualquer lista de recomendações na qual esteja.”

Não muito tempo depois, a recomendação para InfoSpace foi cortada. As ações já estavam abaixo de US$15,00.

***

Era início de 2000 quando uma empresa chamada GoTo.com contratou a Merrill Lynch para levantar recursos junto a investidores europeus. Como parte do pacote contratado, a instituição passaria a cobrir as ações da companhia. 

O relatório de início de cobertura de Blodget foi publicado em Janeiro de 2001, recomendando compra de longo prazo. Naquele mesmo dia, um gestor de recursos da American Express lhe enviou um e-mail perguntando: “o que há de interessante na GoTo além dos fees [comissões] de investment banking [que a Merrill estava recebendo por conta do contrato firmado]?”

A resposta de Henry foi “nada”.

Meses mais tarde, GoTo.com – que pretendia realizar uma nova oferta de ações – informou à Merrill Lynch que faria a operação não com eles, mas sim com o Credit Suisse. Naquele mesmo dia, Edward McCabe, também analista do time de Blodget, lhe enviou um email informando que tinha um relatório preparado para fazer um downgrade da recomendação de GoTo. 

“Ótimo, ferre eles” foi a resposta.

Em Outubro do mesmo ano, outra analista da equipe de Blodget, Eve Glatt, enviou para ele um artigo que sugeria que outra empresa de seu universo de cobertura, a 24/7 Media, estava enfrentando problemas tecnológicos. Dizia Glatt: “Não sei se você viu isso; nada revolucionário, mas provavelmente confirma o que você e Virg [Virginia Syer, a mesma da qual falei logo acima] falavam a respeito outro dia”. 

Blodget respondeu: “Que isso [a empresa] é um monte de merda, né?”

As ações da empresa à qual Blodget se referia como “monte de merda” eram recomendadas por ele.

Levantamentos posteriores demonstraram não somente que Blodget se referia de maneira similar a outras empresas de seu universo de cobertura – mesmo àquelas cujas ações recomendava – como, tanto pior, que tal prática era muito mais difundida na indústria do que se gostaria de se admitir.

***

E se, talvez, os analistas não acreditarem tanto assim no que dizem?

Trago más notícias: o mundo é feio. Gostaria muito de afirmar que meus colegas de ofício são incorruptíveis, mas a experiência demonstra que isto simplesmente não é verdade. 

Esta é uma indústria que está, sim, sujeita a uma ampla gama de conflitos de interesse. E você precisa ter consciência disso antes de tomar qualquer recomendação – qualquer uma – pelo seu valor de face.

O primeiro, e mais evidente, se dá com os analistas que trabalham para instituições financeiras: à medida que estas mantêm outras relações com as empresas cujas ações são avaliadas – por exemplo, em crédito e investment banking -, a turma da análise volta e meia se vê pressionada a adotar este ou aquele posicionamento com o objetivo de favorecer (ou pelo menos não prejudicar) as relações entre banco e empresa.

Eu já recebi, em um passado relativamente distante, puxão de orelha por escrever coisas que a empresa não desejava. Não teve maiores consequências, mas o tempo se encarregou de demonstrar que o que eu escrevi estava certo… 

Outro fator que pode comprometer a independência da análise é o relacionamento do analista com as empresas: nem sempre os acionistas controladores – ou mesmo as equipes de RI – são compreensivos em relação a opiniões desfavoráveis, ainda que legítimas e embasadas, e eventualmente promovem represálias de todo tipo ao profissional. A mais comum é não mais atender pedidos de reunião… isso tende a inibir, por exemplo, recomendações de “venda”.

Não menos importante, mas frequentemente subestimada, é a possibilidade de o sell side (analistas que publicam recomendações) ser “capturado” pelo buy side (analistas e gestores de fundos de investimento): o que começa como uma saudável relação de debate de ideias evolui para uma relação difícil na qual há pressões por posicionamentos contra ou a favor determinadas teses, e que pode acabar comprometendo a análise. 

Por fim, e talvez a mais perturbadora de todas as reflexões: às vezes o analista pode ser o lobo do analista. O medo de ficar de fora, de ficar para trás, de ser deixado de lado pela falta de uma ideia original pode levar profissionais a forçarem a barra e construírem teses nas quais não creem tanto assim, atendendo a uma pressão por publicar. Em um mercado onde há enorme competição por originalidade e volume de produção, volta e meia o pessoal fica “criativo” demais. 

O caso da Merril Lynch veio à tona há mais de vinte anos. Passado tanto tempo, gostaria de acreditar que evoluímos… mas, francamente, tenho cá minhas dúvidas.

***

Toda essa discussão a respeito de potenciais conflitos de interesse por parte dos analistas de investimentos parece ter reacendido recentemente, no Brasil, por conta de um movimento de venda de participações em researches independentes para instituições financeiras.

Tendo participado bastante ativamente dessa indústria, dos dois lados – já fui de research de banco e já fui de research independente (três deles, aliás) -, acho que posso dizer uma coisa ou outra a respeito disso.

De todos os potenciais conflitos que eu listei acima – outras relações comerciais com as empresas, relacionamento com as companhias, captura pelo buy side, pressão por novas ideias -, o único do qual o research independente, a princípio, não sofre, é o primeiro.

Todos os demais sempre estiveram lá. Sendo que o último – a pressão por novas ideias – é, talvez, o mais marcante, atendendo a pressões de marketing. Qual é a próxima grande coisa que vamos vender?

(Ou você acredita mesmo que, para gerir bem seus investimentos, você precisa de 36 assinaturas de relatório diferentes?) 

Então, sinceramente? Eu nem acho que ter banco como sócio mude a música que a banda toca tanto assim: é tão somente uma faceta de potenciais conflitos que, ao contrário das outras, é mais visível a quem olha de fora.

Em outras palavras: as preocupações que muitos levantam agora deveriam ter sido levantadas desde o princípio. Sempre deveriam ter estado lá.

O fato de um research ser 100% independente não garante, por si só, 100% de isenção de suas opiniões. Existem conflitos inerentes ao próprio modelo de negócio, que serão maiores ou menores a depender da instituição, mas que precisam ser eternamente domados.

Isso significa que nenhum research presta? Longe disso. Trata-se, na verdade, de o cliente entender que, do outro lado do balcão, há conflitos em potencial. E isso demanda criticidade diante das opiniões emanadas: sempre olhei com muita preocupação, em minhas diversas encarnações em researches independentes, com a obediência cega de muitos assinantes.

Digo com todas as letras: o analista não está lá para dizer para você o que você deve fazer. Ele está lá para compartilhar uma opinião sobre a qual você deve refletir, comparar, criticar e decidir se quer seguir ou não. E você deve ter consciência de que não há garantias de isenção absoluta daquela opinião. 

“Mas Ricardo, isso dá muito trabalho! Se eu paguei pelo research, é para fazer o que o analista me diz para fazer.”

Se você acha que o fato de estar pagando elimina todos os potenciais conflitos de interesse, sugiro que releia o artigo.

Lembre-se: no final do dia, é o seu dinheiro. Seu.

Até a próxima.


*Ricardo Schweitzer é analista CNPI, consultor CVM e investidor profissional. 

Twitter: @_rschweitzer, Instagram: @ricardoschweitzer

Gostou? Compartilhe nas Redes Sociais:
Facebook
Twitter
LinkedIn
Receba em primeira mão nossas novidades

Assine nossa Newsletter

Baixe já nosso App